Será que o multilateralismo está em crise? Para que servem as agências multilaterais e os regimes multilaterais nos dias de hoje? Tradicionalmente o multilateralismo ele é tributário do final da Segunda Guerra Mundial. As principais agências, os principais acordos, os regimes internacionais que consolidaram o multilateralismo todos se desenvolveram fundamentalmente a partir de 1945, e foram muito importantes – esses acordos, essas organizações internacionais – no âmbito do comércio, dos direitos humanos e do meio-ambiente para a consolidação de diferentes formas de regulação da ordem global pós-1945. Hoje, 2016, o multilateralismo estaria em crise. Por que? Então, para tentar responder a essa pergunta a partir de uma perspectiva dos países do Sul, eu vou tentar ilustrar a partir de três casos: o regime comercial internacional, o regime internacional de direitos humanos e o regime internacional ambiental. Então, vamos ao primeiro ponto sobre o multilateralismo comercial. Multilateralismo nos remete a uma série de práticas entre diferentes atores, sobretudo estatais, mas também não estatais – operadores econômicos e organizações não-governamentais – que tentam incidir sobre os mecanismos de regulação da ordem internacional, aqui neste caso falando especificamente do regime comercial internacional. O regime comercial internacional nasce com as negociações em torno do GATT, o Acordo Geral de Tarifas e de Comércio, o Brasil faz parte desse acordo desde o início, é um membro fundador do GATT, esse é um aspecto importante do ponto de vista da legitimidade da participação brasileira nas negociações comerciais multilaterais, quando há uma transição entre o GATT e a constituição da OMC, entre 1994 e 1995, o Brasil mais uma vez está presente, participou de todas as negociações, e está presente no momento de criação, de fundação da Organização Mundial do Comércio. O Brasil sempre foi tradicionalmente um país defensor dos aspectos regulatórios definidos e discutidos e negociados nos espaços multilaterais, e isso também se aplica ao caso do comércio. Hoje, parece que essa função de produção de bens públicos do multilateralismo estaria em xeque. Qual é a função da OMC hoje? Qual é a função da OMC diante das negociações do chamado plurilateralismo em curso, ou seja, a Parceria Transpacífica, que constitui o principal exemplo de uma tentativa de negociação multilateral de aspectos ligados a comércio, investimentos e propriedade intelectual fora do âmbito multilateral específico que seria a OMC? Diante das dificuldades de conclusão da rodada Doha pelo desenvolvimento, aonde pela primeira vez na história os países em desenvolvimento se organizam para colocar na agenda as suas questões importantes em matéria de desenvolvimento, em matéria de agricultura, em matéria de negociação de serviços, e não somente a agenda dos países do Norte, a gente percebe que a rodada Doha não avança, a rodada Doha se encontra bloqueada, e diante desse bloqueio da rodada Doha, o que propõe alguns países, capitaneados pelos Estados Unidos, uma saída da OMC para a negociação de uma Parceria Transpacífica de acordo com as suas regras, com os seus interesses, e mais importante aspecto, totalmente fora do espaço multilateral de negociação. Multilateralismo não é perfeito. O multilateralismo evidentemente tem uma série de déficits democráticos. As empresas participam muito mais do que a sociedade civil, isso é evidente, mas o multilateralismo, no âmbito das relações internacionais, foi o que de mais próximo se conquistou e se construiu a democracia no espaço internacional. As regras existem, os procedimentos são claros, conhecemos quem são os atores da negociação, então, o multilateralismo como instituição ele também protege os interesses daqueles que são mais fracos, ou seja, os países em desenvolvimento, na negociação com os mais fortes, os países desenvolvidos. Então, é curioso que nesse momento da história, em 2015, em 2016, diante da entrada na Organização Mundial do Comércio de um novo diretor, o embaixador Azevedo, brasileiro que foi eleito com maioria de votos pelos estados membros da Organização Mundial do Comércio contando com forte apoio dos países africanos, um apoio não tão importante mas também considerável dos países latino-americanos, consegue a sua eleição e diante desse mudança da direção da Organização Mundial do Comércio, com uma ênfase maior nos interesses dos países em desenvolvimento, há um deslocamento das agendas de negociação para fora da OMC. Então, esse é um momento muito importante, muito perigoso do ponto de vista da regulação do comércio internacional, porque as regras não são mais decididas e discutidas e negociadas no âmbito de um espaço multilateral institucionalizado. As instituições não são neutras. As instituições elas congelam determinadas regras de acordo com determinado contexto histórico. Mas, para os países menos desenvolvidos, as instituições geralmente protegem, porque simplesmente garantem alguns direitos de participação, de voto, de negociação, em espaços bastante definidos. Quando essas negociações saem dos espaços multilaterais, os que mais perdem são os mais fracos, os que mais ganham são os mais fortes que têm uma capacidade de imposição das suas agendas em detrimento das agendas que podem ser negociadas nos espaços multilaterais. Isso fica muito evidente no caso da agenda multilateral de comércio. Segundo exemplo que pode ser problematizado diante dessa chamada hoje crise do multilateralismo na ordem global contemporânea, que é o regime internacional dos direitos humanos. Por que que há uma crise desse regime internacional dos direitos humanos nos dias atuais? Há inúmeros acordos internacionais, muitos países em desenvolvimento são signatários e ratificaram boa parte desses acordos, a gente percebe que algumas potências estabelecidas ainda não assinaram acordos muito importantes, basta lembrarmos que os Estados Unidos não assinaram até hoje a Convenção sobre os Direitos das Crianças, a Convenção sobre todas as formas de discriminação dos direitos e violação dos direitos das mulheres, só para citar dois exemplos, países latino-americanos, como México, Argentina, Brasil, Uruguai, Chile, são campeões do regime internacional de direitos humanos, porém... campeões porque assinaram praticamente todos os acordos internacionais nesse regime, mantêm, como no caso brasileiro, argentino, no caso chileno, o convite permanentemente aberto a relatores das Nações Unidas, do Conselho dos Direitos Humanos das Nações Unidas para visitas, para missões de avaliação, para realização das suas relatorias, mas há uma denúncia por parte de alguns países em desenvolvimento, de que boa parte das denúncias em matéria de violações de direitos humanos sofre a pressão de uma política seletiva, aquilo que em inglês se chama uma prática de double standards, ou seja, dois pesos e duas medidas. Denunciamos as violações de direitos humanos no Irã, denunciamos as violações de direitos humanos em Cuba, denunciamos as violações de direitos humanos na Venezuela, mas na Arábia Saudita “no pasa nada”, nada acontece na Arábia Saudita, é como se não houvesse violações de direitos humanos na Arábia Saudita ou em Israel. Então, há uma política muito seletiva por parte das grandes potências que coloca em xeque a universalidade e a indivisibilidade dos direitos humanos que são dois marcos importantes do regime internacional. Terceiro exemplo de crise do multilateralismo à luz do regime ambiental internacional. O Brasil, na sua história, ele sempre, sobretudo em função do regime militar, da ditadura militar que assolou o país entre 1964 e 1985, teve uma política externa ambiental muito defensiva. O regime militar era muito cioso do que poderia representar um regime internacional ambiental para os seus interesses estratégicos e geopolíticos na Amazônia, como em matéria de direitos humanos. Evidentemente que a ditadura militar não queria ouvir falar de normas internacionais em função das reiteradas violações, práticas de tortura no cenário doméstico brasileiro. No caso do meio ambiente não era muito diferente. Havia uma posição muito mais protecionista, muito mais soberanista em relação aos recursos da floresta amazônica, aos recursos hídricos, e qualquer norma internacional em matéria ambiental representaria muito mais uma ameaça do que uma proteção nessa grade de leitura feita no âmbito da ditadura militar brasileira. Com a democratização, pouco a pouco o Brasil vai sendo reconhecido como um ator fundamental nas relações climáticas, nas relações ambientais internacionais. Matérias de clima, em matéria de biodiversidade, em matéria de proteção às florestas, são agendas nas quais o Brasil tem tido uma atuação muito presente, muito forte em termos de mediação dos interesses entre os países do Norte e os países em desenvolvimento. O Brasil, evidentemente, tem uma das maiores riquezas em termos de biodiversidade, é um país mega diverso, tem florestas tropicais e equatoriais de extensão fundamental para o próprio clima global, e tem uma matriz energética bastante limpa na comparação com outros países em desenvolvimento emergentes, inclusive com potências estabelecidas do Norte. Agora, existe um aspecto que é sempre muito defendido pela política externa brasileira, pela diplomacia brasileira, que é em negociações climáticas multilaterais a necessidade de que os países reconheçam, é claro, responsabilidades comuns, e aqui o Brasil sai da política defensiva e abre a capacidade de negociação e de mediação nas negociações, ou seja, “Vamos negociar, temos responsabilidades comuns”, porém, historicamente diferenciadas, ou seja, o momento em que você vai definir as responsabilidades de cada um dos agentes, Estados do Norte, do Sul, mais desenvolvidos, países em desenvolvimento, países do Sul mais desenvolvidos em relação a outros países do Sul menos desenvolvidos, você tem de estabelecer padrões diferenciados de responsabilidade. Todos têm responsabilidade em relação ao meio-ambiente global, todos têm igual responsabilidade com relação ao bem comum, ao bem público que é o clima do planeta, porém, essas responsabilidades têm de ser diferenciadas historicamente em função dos padrões de poluição, de consumo, os estilos de vida, o momento histórico em que os processos de industrialização ocorreram em países do centro e em países da periferia e da semiperiferia do capitalismo internacional. Então, essa questão é muito importante e que pode, evidentemente, gerar uma série de debates, de aceitações e de negociações que são travadas em relação à mudança climática e à ecopolítica internacional. Diante desses três exemplos, eu gostaria de concluir em torno de um argumento. O argumento é de que hoje o multilateralismo está em crise, ele talvez seja menos funcional aos interesses das grandes potências, e pode ocorrer um processo de desconstitucionalização da ordem internacional. O que seria essa desconstitucionalização? Nós perderíamos pouco a pouco a capacidade de regulação por meio de acordos, por meio de tratados, por meio de regimes internacionais sobre os problemas gerados pela própria interdependência que a globalização representa entre as economias, entre os modelos de desenvolvimento de cada um dos países. Então, por meio de que mecanismos, por meio de que procedimentos os Estados do Sul e do Norte, do centro e da periferia do sistema internacional negociarão essas novas normas? Se o multilateralismo entra em crise, se a gente vai assistindo pouco a pouco um processo de desconstitucionalização da ordem internacional, quais são os riscos em termos de mecanismos de regulação das interdependências e dos efeitos gerados pelas interdependências na ordem global contemporânea? O risco pode ser o fim do multilateralismo, o risco pode... essa crise do multilateralismo avançar ainda mais. Isso em prol de negociações menos transparentes, o plurilateralismo, como se convencionou chamar esse conjunto de negociações fora dos espaços institucionais das Nações Unidas, da Organização Mundial do Comércio, das agências multilaterais, essas negociações que são realizadas sob a tutela dos mais poderosos em relação a países que têm interesse em negociar com os países mais poderosos um regime de comércio mais liberal, ou normas ambientais que sejam de interesses dos dois lados em negociação, tendem a ser muito menos transparentes, são negociações que são muito mais opacas, e que se assemelham muito mais a um minilateralismo do que a multilateralismo aonde as instituições, as regras, os procedimentos são claros. Também representam o exercício de poder dos mais fortes em relação aos mais fracos. E também uma estratégia, no caso do Trans-Pacific Partnership, da Parceria Transpacífica, uma estratégia muito clara de contenção dos BRICS e de contenção da China na sua esfera de influência asiática e latino-americana.